Andréa Teixeira

Som dos Deuses: a música na religiosidade na Cidade de Goiás

Minhas incursões de trabalho na Cidade de Goiás remontam aos bons últimos 20 anos, fazendo a curadoria dos concertos do Sábado Santo na Igreja do Rosário, a convite do IPHAN, cuja superintendente, na época, era Salma Saddi. E o trabalho se intensificou após a pandemia, com o projeto de curadoria da Série Diálogos Musicais, que acontecem mensalmente aos sábados de lua cheia, antes da Serenata.

Neste último fim de semana, estive alguns dias na Cidade de Goiás para trabalhar na referida série de concertos e no Simpósio Internacional de Musicologia da EMAC-UFG. Conversando com Patrícia Mousinho, no dia 30 de junho, falamos sobre a Festa de São Pedro, que aconteceria no Alto Santana.

Combinamos para irmos juntas e presenciei a reza, a procissão e o levantamento de mastro, tudo recheado por música, religiosidade, tradição e muita fé. No dia seguinte, 1º de julho, fui ao concerto do Coral Solo, regido por Sebastião Curado e acompanhado ao piano por Consuelo Quireze, cujo título era: Música Sacra Vilaboense.

Venho trazer aqui, dois momentos religiosos e musicais distintos que permeiam há séculos as tradições vilaboenses. Não importa que seja no Alto Santana ou na igreja São Francisco. Todas as manifestações culturais possuem seu devido valor.

De todas as manifestações humanas, o sagrado que o homem constrói representa a sua fé. A memória musical religiosa no seu caráter sagrado sempre nos coloca nos limites da existência e morte. São músicas, cânticos que entoam esses limites. Os sons que ouvimos desde criança passam a compor nossa vida pelas lembranças dessas melodias e letras, e essa música encanta, embala, consola, encoraja, fortifica, entristece, acalenta, transforma, porque foi concebida dentro de uma atmosfera sagrada e solene no seu mais puro aspecto. O compasso cantado, muitas vezes, é o mesmo do ritmo das batidas do nosso coração. O mesmo da natureza manifestada na presença dos deuses nos homens e nos animais, como o andar da capivara, onça, tatu, lobo-guará…

O processo civilizatório e, consequentemente, cultural, se apresenta em diversas formas: nas crenças, nos hábitos alimentares, na linguística e no sistema organizacional das comunidades, até chegarmos às manifestações culturais que são tão efervescentes na Cidade de Goiás, e merecem todo apoio, em todas as suas diversidades. O processo histórico e os aspectos físico-geográficos de uma região são fatores que influenciam aquela comunidade ali inserida na adoção de vivências que a diferenciam de grupos sociais que habitam outras regiões. Entretanto, é importante lembrar que os hábitos e atitudes típicos de um povo evoluem no tempo e no espaço, e podem também sofrer de transculturação. Assim, mesmo tendo um mosaico de diferentes culturas e várias manifestações, as pessoas que saem de sua comunidade em busca de trabalho ou estudo em outros lugares, levam consigo suas vivências individuais e coletivas para o novo destino, e ali se reagrupam sem perder a sua identidade cultural.

A música é o elo que deixa livre a criação das letras nas várias manifestações religiosas, sem que percam sua unidade, seu início. A música articula uma memória que não é apenas uma memória retrospectiva. Ela é uma memória no sentido de ter configurado algo como um acontecimento histórico. A música é articuladora do ser da manifestação religiosa porque ela não é mediadora, e sim manifestadora. A memória traz à tona a tradição, a herança cultural. Ela vive existindo no próprio ser humano.
Que a Cidade de Goiás continue assim, produzindo, criando, recriando, se organizando e compondo em seus diversos bairros, sua identidade cultural.

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