Artigos, Crônicas e Poesias

Seresteiros e orquestra

LAURO TAVEIRA

A música sempre foi cultuada em Goiás. Grande número de famílias possuía pianos, que eram executados exclusivamente pelo elemento feminino.

Existiam várias senhoras e senhorinhas peritas na arte do teclado. Em quase todas as ruas, ouviam-se trechos de consagradas óperas, tangidas por ágeis e obedientes dedos. O violão era o mais comum instrumento entre os homens. Naquela época, dedilhavam-no para acompanhamentos e não para solos. Em reuniões, eram habituais os recitativos acompanhados ao violão. Em pequena escala, existiam flautistas e violinistas, exímios em seus instrumentos.

Somente após a Primeira Guerra Mundial é que se organizou o primeiro conjunto que foi contratado para tocar nas sessões do Cinema Ideal. Compunha-se de uma pianista, além de violinos, flautas e bateria. Adquiriam-se peças, devidamente orquestradas por insuspeitos nomes da música brasileira, que eram interpretadas com exatidão e extrema sensibilidade. Desse modo, o assistente era recompensado, porque, se a película lhe fosse monótona, a orquestra o deleitava.

Dentre os amadores, faleceram a aplaudida pianista Srta. Edméia de Camargo, e um dos flautistas, dr. Armando Esteves; os demais são todos setuagenários. Desafiando o meu julgamento como narrador imparcial, aponto a geração atual o nome do meu presado amigo, Julio de Alencastro Veiga, descendente de honrada e tradicional família goiana e ex-participante do “Conjunto Ideal”.

Que emitam a sua opinião os incontáveis ouvintes da televisão goiana, em cujos programas ainda hoje se apresenta, raramente, com seu violino mágico, esse remanescente Dieuterpe. A sanfona e a viola eram os instrumentos preferidos pela população rural, que os manejava mecanicamente. Cantavam-se desafios, e os trovadores colhiam aplausos no meio de seus aficionados.

Mais tarde, no início da terceira década, as orquestras argentinas incluíram as concertinas, que são modalidade de acordeão, em seus conjuntos. Assim nobilitada, a plebeia sanfona se fez ouvir nas grandes capitais, dedilhada por músicos proficientes. O maestro Canaro divulgou o harmonioso tango em nosso país, e a voz sonorosa de Carlos Gardel o implantou em todo o globo terráqueo.

Uma das mais vigorosas e penetrantes inteligências oriundas de Goiás foi a de Joaquim Bonifácio de Siqueira. Poeta, historiador, jornalista, deixou luminosos e indeléveis testemunhos de suas multifárias atividades. De saúde precária e de notória modéstia, faleceu na pujança de seu espírito criador e privou os goianos de muitas outras valiosas contribuições, eternamente sepultadas com o seu desparecimento. Anônimos seresteiros musicaram algumas de suas poesias líricas, que se transformaram em patrimônio da cidade. Cantaram-se e ainda hoje se cantam para deleite dos ouvintes. É evidente que outros contribuíram com seus versos inspirados para a variedade do repertório.  Advém, nesse ínterim, como fator coadjuvante para a multiplicação das composições musicais, o gramofone.

Desconhecidas irias, que sempre se renovavam, passaram a ser selecionadas e cantadas pelos seresteiros.

Na calada da noite, empunhando violões, apaixonados menestréis divagavam por ruas e praças e se detinham em lugares predeterminados. Tangiam cordas metálicas, de que extraiam maviosos acordes, e se faziam ouvir com voz de tenor ou barítono. As eleitas escutavam, confortavelmente instaladas em seus aposentos, confortavelmente instaladas em seus aposentos, as ternas promessas e juras de amor! Uma suave ternura lhes percorria os corpos e havia delíquios de prazer! A natureza humana encerra mistérios e segredos indevassáveis. Embriagadores sonhos, alimentados por Juno prônuba, se apoderaram daquelas castas virgens, sob o império da maliciosa e trêfega deusa.

Os serenatistas eram moços descendentes de exemplares famílias. As noites preferidas eram as aclaradas por límpidos luares. Os morros e os vales, inundados da indecisa luz do satélite, convidavam os jovens à perambulação. A natureza é uma inesgotável fonte de prazerosas sensações e infunde na alma os mais vagos e desencontrados sentimentos. Nela se espelha a ubiquidade divina.

As radiolas, eletrolas e rádios puseram termo às serestas. A indústria começou a produção de discos, em que se gravavam vozes educadas e músicas primorosamente orquestradas. Dispersos pelo imenso Brasil, os menestréis não podiam enfrentar a arte cuidada, emanada de populosos centros urbanos. Atrofiaram-se e desapareceram. As baladas de sucesso ouvem-se em todos os lares, para depois serem postergadas como fastidiosas. É condição humana repelir aquelas cousas que, de início, causavam prazer.

Até a própria Lua, inspiradora de afetos e paixões, perdeu a magia e se tornou prosaica. Nesta era atômica, em que a eletrônica e os computadores vêm dando ao mundo inimaginável progresso, já viu o seu solo palmilhado, em parte, por seres humanos. Criou o homem a fantástica navegação espacial, e Armstrong foi o primeiro astronauta a tocar-lhe o chão pulverulento. Como se nos afigura ridículo o malsucedido voo do mítico Ícaro! Mais poderosa, entretanto, do que todas as maravilhas atuais é, incontestavelmente, a imaginação humana, fautriz do inconcebível.

Trecho do livro A Sombra da Serra Dourada – Três quartos do século XX em Vila Boa de Goiás, escrito por Dr. Taveira em 1976, um ano antes de sua morte e publicado em 2022.

Lauro Taveira nasceu na cidade de Goiás em 1904. Formou-se em medicina no Rio de Janeiro em 1927 e exerceu sua profissão nas cidades de Jatái, Mineiros, Pontalina e Itumbiara. Faleceu em Goiânia em 1977, aos 73 anos.

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