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O legado de Cora: 135 anos de doces saudades de Aninha

No dia 20 de agosto, o Brasil lembrará os 135 anos de Cora Coralina, mulher à frente do seu tempo, maior nome da literatura goiana e uma das mais admiradas poetas brasileiras

VÂNIO LIMIRO

 

Cora fazendo o que mais gostava: escrevendo na Casa da Ponte Foto: José Elias

No dia 20 de agosto Cora Coralina completaria 130 anos e a memória dela segue presente, não só para aqueles que ficaram marcados pela sua história; não apenas para os goianos, mas para quem ama a cultura, as artes e as letras.

A mulher que estudou apenas até a terceira série do curso primário se tornou o maior nome da literatura goiana e uma das mais admiradas poetisas brasileiras, apesar da estreia tardia na carreira, aos 75 anos. As letras eram um passatempo, ganhava a vida como doceira.

Cora é considerada por estudiosos e especialistas em sua obra como uma mulher forte e libertária. Embora não tenha incorporado o discurso feminista, a forma como ela se impôs na sociedade machista e conservadora em que vivia fez com que também pudesse ser estudada sob a perspectiva de gênero.

Cora nasceu em 20 de agosto de 1889, quando a cidade de Goiás ainda era Vila Boa de Goyaz. Aos 14 anos de idade, começou a escrever seus contos e versos. Em 1985, aos 95 anos, ela morreu por causa de uma pneumonia, deixando um legado que é reconhecido, lembrado e celebrado intensamente até hoje.

A escritora saiu da cidade de Goiás em 1910, com a idade de 21 anos, na garupa do cavalo de um do advogado Cantídio Tolentino Bretas, com quem viveu de 1910 a 1934, ano de sua morte: sua mãe foi contra o namoro, por que ele era desquitado e tinha filhos. Cora e Cantídio só se casariam em 1925, quando ele ficou viúvo – à época não havia divórcio. Quando ele morreu, Cora vendeu linguiça, banha e livros, fez doces e trabalhou na roça para sustentar os filhos.

Quarenta e cinco anos depois, em 1956, Cora teve a coragem de voltar para buscar suas memórias e escrever sobre sua terra. “Na cidade de Goiás, como antiga capital do estado, havia uma agitação cultural forte e mulheres inscritas no tradicionalismo, no conservadorismo da cidade, mas que também atuavam”, conta a professora aposentada da UFG e ex-secretaria de Cultura da Cidade de Goiás, Goiandira Ortiz de Camargo.

Cora publicaria seus primeiros textos no semanário A Rosa, dirigido por ela própria e outras poetas. Em 1908, publicou os primeiros versos, aos 14 anos, no semanário. Em 1910, pela primeira vez, seu conto, Tragédia na roça, saiu no Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás, com o pseudônimo de Cora Coralina.

De acordo com Goiandira, a poetisa não se inspirava apenas nas mulheres, mas lia poetas como Almeida Garrett e textos que vinham do exterior. “Ela estava alguns passos à frente dessas mulheres que escreviam nos moldes tradicionais, sonetos, poesia metrificada, simbolista ou parnasiana. Elas tinham medidas. Cora não, Cora era da desmedida. Seus primeiros versos assustaram tanto as pessoas que os imputaram ao primo dela Luiz do Couto”, conta Goiandira.

Para a professora de literatura da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Ebe Lima Siqueira, essa face de Cora, como uma mulher que estava rompendo limites, estava muito clara na cabeça dela, embora o conservadorismo da formação que recebeu também fosse muito presente.

“Ela dizia que mulher não devia trabalhar, tanto que ela cuidou dos filhos, foi dona de casa, e, enquanto esses filhos não se encaminharam, ela não deu seu grito de independência”, disse Ebe.

Para Ebe, Cora tinha essa consciência de gênero, mas não no sentido de uma liberação sexual. Embora tenha sido ousada para o tempo dela, pelos registros históricos e depoimentos, ela foi fiel ao marido e a essa memória até a morte. “Para romper isso ainda precisaria de mais 50 anos de vida de Cora, tanto que voltar para a cidade de Goiás tinha esse papel [de rompimento]. Quando ela diz que está escrevendo para gerações futuras, ela sabia que não ia encontrar eco na sua geração”, disse Ebe.

Os delicados versos de Cora levaram sua terra natal para o mundo. Os poemas falam da vida simples na primeira capital goiana.

Desenho de Cora – Foto: Reprodução/Revista Prosa Verso e Arte

Reconhecimento

“Uma mulher além do seu tempo. Mesmo enfrentando dificuldades e preconceitos, ela acreditou nos valores humanos, sempre recomeçando. Nossa cidade se alegra neste 20 de agosto, a semente foi lançada em terra fértil. Celebrar os 130 anos de nascimento de Cora é, acima de tudo, relembrar a importância que ela tem para a sua terra natal. Cora não pertence à velha Goiás, ela é do mundo”, afirma Marlene Velasco, amiga da escritora e diretora do Museu Cora Coralina.

O primeiro livro de Cora Coralina, ‘‘Poemas dos becos de Goiás e estórias mais’’, foi publicado, pela primeira vez em 1965 pela editora José Olympio, quando a poetisa tinha 75 anos. Ela já era conhecida em sua cidade, mas continuou a ser ignorada pela crítica acadêmica, mesmo com essa publicação. A figura de uma senhora de cabelos brancos não era vista com seriedade. Se não bastasse ser mulher, velha e sem posses, as escolhas estéticas feitas por Cora não agradavam aos críticos, por optar por um vocabulário popular e personagens marginalizados, como escravas e sinhás, analfabetas e professoras, prostitutas e lavadeiras.

A obra de Cora Coralina, que só obteve grande reconhecimento público quando já era idosa, principalmente graças aos elogios de Carlos Drummond de Andrade, que passou a chama-la de “Diamante Goiano”. Foi nos cinco últimos anos de sua vida que Cora teve o reconhecimento de sua obra e foi bastante homenageada. Além do artigo escrito por Drummond, em 1980, que deu projeção à poesia da autora, nesse mesmo ano, ela recebeu o Troféu Jaburu, concedido pelo governo de Goiás.

O Troféu Juca Pato chegou em 1983. Esse prêmio anual da União Brasileira dos Escritores foi concedido a renomados autores da literatura brasileira, como Érico Verissimo, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Cora foi a primeira mulher, desde o início da premiação (1963), a receber essa homenagem.

Além dos prêmios, a poetisa recebeu também, em 1983, o título de doutora honoris causa da Universidade Federal de Goiás (UFG). Essa expressão latina — honoris causa — pode ser traduzida como “por causa de honra”. O título, portanto, é concedido por universidades a pessoas que, em virtude de sua importância em algum campo de atuação (no caso de Cora Coralina, a escrita literária), merecem um título honorário de doutor ou doutora mesmo não tendo frequentado um curso acadêmico.

Vivência Bretas, filha mais nova e guardiã dos escritos de Cora Foto: Nilton Fukuda

Legado

Única filha viva da poeta e doceira, a também escritora Vicência Brêtas Tahan é e a guardiã de seus escritos. Vicência fala sempre com carinho sobre as lembranças que guarda da mãe, as lições aprendidas e a saudade.

A poeta dos versos simples que encanta tantos leitores foi uma mãe exigente. “Ela nunca aceitou que a gente ficasse em cima do muro. “Com ela, era assim: ou você toma partido ou fica de boca fechada. E, quando tomar partido, fique firme até ser convencido a mudar de opinião. Mas ela nunca aceitou que alguém falasse ‘não sei’, ‘quem sabe’. A gente tinha que saber”, conta.

Se Cora foi uma mãe carinhosa? Vicência diz que, naquele tempo, não era costume ficar acarinhando, abraçando filho, beijando. “A gente tinha que tomar bênção para dormir e quando levantava. Não era de achego. Ela viveu o tempo dela e criou os filhos de acordo com esse tempo”, completa.

O que Vicência ressalta mesmo é a persistência de Cora com as letras. “Minha mãe começou a escrever muito cedo, aos 14 anos, mas naquele tempo ninguém dava valor à escrita da mulher. E ela foi guardando, guardando. Depois, se casou e meu pai era daquela geração bem machista: não a deixava mostrar os poemas que escrevia, e ela continuou guardando. Até que, aos 75 anos, já viúva, com os filhos criados e casados, ela voltou a se interessar por publicar e conseguiu”, conta.

Cora Coralina só publicou três livros em vida – Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (1965), Meu livro de cordel (1976) e Vintém de cobre: meias confissões de Aninha (1983). Hoje, há 16 títulos nas lojas, incluindo um livro de receita e oito para crianças.

Em julho de 1983, Cora Coralina deu uma entrevista para a jornalista Miriam Botassi, uma bibliotecária e feminista que participou da criação do Centro Informação Mulher. Mais tarde, essa conversa foi publicada, em parte, na revista Mulherio. Algumas frases marcantes da autora durante esse encontro encerram esta matéria que o Jornal Nova Fogaréu publica neste mês do 135º aniversário da eterna Aninha.

“Eu não era carneiro para andar aí pastorado.”

“Fui limitada na primeira infância, fui limitada de menina, fui limitada de adolescente, fui limitada de casada e não quero ser limitada depois de velha.”

“O medo é a escravidão maior da criatura.”

“Não me sinto livre, me sinto liberta.”

 

Imagem de destaque – Reprodução/Secom – Câmara dos Deputados.

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