Já havia tentado várias ocupações, mas certificou-se que tinha habilidade para o ofício de chaveiro. Percebeu, desde a época de auxiliar, que seria competente para abrir seu próprio quiosque. Não passara da quinta série, vez que, logo cedo se viu obrigado a largar os estudos e ajudar a mãe no sustento da casa. Contudo, como reza o velho ditado popular “Deus tira os dentes, mas alarga a goela”, Rafael sempre fora habilidoso em trabalhos manuais. Encarava com destemor esses mecanismos chatos, que possibilitam abrir portas herméticas, fechaduras invioláveis, segredos inextrincáveis.
Rafael pode ser encontrado lá, em seu posto de trabalho na Nona Avenida, Vila Nova. Às vezes sua filhinha passa um sábado com ele, brincando com as crianças vizinhas, na calçada do Bar do Jabuti. Ele, o chaveiro, quase sempre ocupado com suas ferramentas, procurando amealhar um dinheiro pingado a conta gotas.
Ao pedido do freguês, ora aqui ora ali, fecha temporariamente seu quiosque, liga a motocicleta e sai em algum socorro urgente. Caixa de ferramentas na garupa. Alguém trancado pelo lado de fora, aflito. No caminho, consome-se em solilóquios e fluxos de consciência, sem se dar conta disso. Rafael urge.
O quiosque estará sempre ali: “Rafael Chaveiro – 24 Horas”.
Mas só que Rafael recebeu a visita do fiscal da prefeitura. Não tinha o tal de “Alvará”, um insuportável papel que de nada serve, a não ser para pagar mais uma taxa na vida. O funcionário lhe deu dez dias para providenciar um rosário de documentos. Rafael arrumou uma pasta de papel com ligas de plástico e passou a juntar a papelada. Mas se deteve com uma exigência esquisita: “Atestado de Aptidão Física e Mental”.
Quem forneceria aquele famigerado atestado? Perguntou daqui, perguntou dali e ficou sabendo que em qualquer posto de saúde. Não conseguiu ser atendido. Passaram-se os dez dias. O fiscal começou a desconfiar de Daniel, que recorreu a um médico particular. Este levantou suas pálpebras, mediu sua pressão arterial e, sonolento, emitiu um documento com letras indecifráveis, com vistosa assinatura: “o paciente está apto física e mentalmente a exercer a profissão de CHAVEIRO”.
Rafael conseguiu o ‘Alvará”. Emoldurou-o e pendurou no quiosque, para qualquer fiscal mal encarado ver. Com o “Atestado de Aptidão Física e Mental”, agiu do mesmo jeito. Só que tratou de fixá-lo na sala de sua modesta casa, fazendo as vezes de um belo diploma.