VÂNIO LIMIRO
“Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada. (…) Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina. (…) Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade varia. (…) Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na solidão (…).”
Estas palavras, ditas pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, foram publicadas no dia 27 de dezembro de 1980 em sua coluna publicada aos sábados no Jornal do Brasil. As palavras de Drummond levaram a obra da poetisa Cora Coralina ao restante do país.
Há quatro décadas, o Brasil se despedia de uma de suas vozes mais autênticas e inspiradoras: Cora Coralina. A inesquecível Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas faleceu em Goiânia aos 96 anos no dia 10 de abril de 1985, em consequência de uma pneumonia, deixando um legado literário que transcendeu gerações e se mantém vivo até hoje.
Diferente dos grandes escritores da época, Cora não se inspirava em cenários aristocráticos ou em grandes feitos históricos. Suas poesias e prosas falavam sobre a vida do interior, das mulheres, dos becos e ruas de Goiás, da simplicidade do dia a dia e da força do povo brasileiro.
Mesmo tendo iniciado sua carreira literária oficialmente na terceira idade, Cora foi reconhecida por grandes nomes da literatura, como Carlos Drummond de Andrade, que exaltou sua genialidade. Seu trabalho rompeu barreiras e provou que nunca é tarde para realizar sonhos e deixar uma marca no mundo.
Ao longo dos anos, Cora Coralina foi homenageada de diversas formas. Sua casa em Goiás se tornou um museu, preservando sua história e memória.
Quarenta anos após sua partida, Cora Coralina segue presente na literatura e no coração dos brasileiros. Sua poesia, feita de sentimentos verdadeiros e imagens vívidas, ecoa como um testemunho de que a arte não tem idade e que, como ela mesma escreveu, “feliz é aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”.
Um pouquinho da magia de Cora
“Nasci num berço de pedras. Pedras têm sido meus versos, no rolar e bater de tantas pedras.”
“A vida é boa. Você pode fazê-la sempre melhor, e o melhor da vida é o trabalho.”
“Na minha alma, hoje, também corre um rio, um longo e silencioso rio de lágrimas que meus olhos fiaram uma a uma e que há de ir subindo, subindo sempre, até afogar e submergir na tua profundez sombria a intensidade da minha dor!…”
“Quando escrevo, escrevo por um impulso interior que me vem do insondável que cada um de nós traz consigo. Mas uma coisa eu digo a você: ontem nós falamos nas pessoas que ainda estão voltadas para o passado. E eu digo a você: não há ninguém que não faça sua volta ao passado ao escrever. Nós todos fazemos. Nós todos pertencemos ao passado. Todos nós. Queira ou não queira. É de uma forma instintiva. Nós todos estamos ligados muito mais aos nossos avós do que aos nossos pais.”
“Sendo eu mais doméstica do que intelectual, não escrevo jamais de forma consciente e raciocinada, e sim impelida por um impulso incontornável. Sendo assim, tenho a consciência de ser autêntica.”
“Sou mais doceira e cozinheira do que escritora, sendo a culinária a mais nobre das artes: objetiva, concreta, jamais abstrata., a que está ligada à vida e à saúde humana.”
“Ajuntei todas as pedras que vieram sobre mim. Levantei uma escada muito alta e no alto subi. Teci um tapete floreado e no sonho me perdi.»
Goiás: cidade da poesia de Cora
Os versos da poesia Minha Cidade, de Cora, abriram, há 24 anos, o dossiê de candidatura do município de Goiás ao título de Patrimônio Cultural Mundial da Humanidade, por parte da Unesco, em Helsinque (Finlândia)
A evocação da vida e obra da filha mais famosa da cidade foi estratégia no documento, mas a população local sabe bem que o legado dela não ficou apenas no passado. É prática real no presente. Duas décadas depois, a Casa da Ponte, que se transformou em museu, é o lugar mais visitado da cidade.
Cora cresceu em meio ao processo de mudanças na vida das mulheres – que aos poucos conquistou acesso à educação e espaços nunca ocupados na sociedade. Frequentou as primeiras séries do ensino primário e aos 14 anos escreveu os primeiros textos. Com 21 anos, grávida, saiu de Goiás para São Paulo em 1911 para poder viver com o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas, que era casado. Criou quatro filhos trabalhando no interior de São Paulo, após a morte do marido. E, 45 anos depois, teve a coragem de voltar para buscar suas memórias e escrever sobre sua cidade.
Voltou viúva para a agora conhecida casa velha da ponte, às margens do Rio Vermelho, em Goiás, onde foi doceira de reconhecida mão cheia. O primeiro livro veio em 1965: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, que foi lançado quando ela tinha 76 anos.
“Eu frequento essa casa desde a minha infância. Eu vinha pra cá e brincava no quintal e ganhava docinho. Ela sempre deu muita atenção às crianças e aos jovens. Ela dizia que o jovem passava energia positiva para ela. Depois, entre 1979 e 1980, eu passei a datilografar os originais”, lembra Marlene Velasco, que se tornou pesquisadora privilegiada da obra da escritora, marcada por tratar dos mais pobres e explorados.
A escritora, aliás, tinha carinho especial pelos moradores próximos: tanto que criou o Dia do Vizinho, confraternização que ocorre no sítio histórico desde 1980. “Cora não precisava, mas resolveu voltar para as raízes dela aqui na cidade em 1956.
Ao retornar, deixou filhos e netos e voltou sozinha para a cidade dela. Foi um retorno triunfal. Se nós não tivéssemos Cora Coralina, hoje a cidade não teria o público, o turismo e o reconhecimento internacional com a dimensão que temos”, afirma Marlene.
Entre doces e letras…
“Fiz os doces melhores da minha cidade e, talvez, do meu país. Mesmo! Acredito que de frutas ninguém trabalhasse em doces melhor do que Cora Coralina. E fiz, sobretudo, do nome bonito de doceira, minha glória maior”. Seu depoimento, transcrito acima, pode ser conferido no belo documentário “Cora Coralina: Todas as Vidas”, lançado em 2017
Mas engana-se quem pensa que seus doces eram admirados apenas pelos moradores do estado de Goiás. Certa vez, em 1982, Cora pediu a seu amigo, o bispo Tomás Balduíno, que levasse ao Papa João Paulo II uma caixinha de suas guloseimas. O Papa aceitou os doces e ainda mandou uma carta oficial do Vaticano em agradecimento.