Antes de Vila Boa, foi em Buenolândia, hoje com 299 anos, que Bartolomeu Bueno fincou o primeiro marco da presença portuguesa em Goiás, se tornando ponto estratégico na disputa territorial entre Portugal e Espanha.
ALEX PEREIRA
O mês de julho é sempre marcado por festejos históricos no município de Goiás. Mas, antes mesmo da antiga Vila Boa completar seus 300 anos — o que ocorrerá em 2027 —, um outro território já começa a ganhar destaque: o distrito de Buenolândia, também conhecido como Barra, comemora agora seus 299 anos e começa, enfim, a reivindicar o protagonismo que lhe é devido na história do Brasil Central.
Em entrevista à Rádio Nova Fogaréu, a professora Luciana Helena Alves, docente da UFG – Campus Goiás – do curso de Arquitetura e Urbanismo e coordenadora de projetos de extensão e cultura, revelou detalhes de sua pesquisa que reposiciona Buenolândia como o primeiro arraial do território goiano, anterior à fundação da própria Vila Boa. “É ali que Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, finca a primeira sede do governo português na região, conforme documentos e mapas da época”, destaca Luciana.
Pouco conhecido do grande público, Buenolândia é considerado por pesquisadores como o marco zero do estado de Goiás e peça-chave na antiga disputa entre as coroas de Portugal e Espanha pelo controle da América do Sul, durante o século XVIII. Localizada a cerca de 30 km da cidade de Goiás, a localidade preserva em sua paisagem e em sua memória coletiva as marcas dessa presença histórica esquecida por muito tempo.
Na época da fundação do povoado, em 1726, a região ainda pertencia oficialmente à Espanha, segundo os limites definidos pelo Tratado de Tordesilhas. No entanto, o avanço das bandeiras paulistas e o interesse de Portugal em expandir suas fronteiras pelo interior do continente levaram à ocupação estratégica do território. “A presença de Bartolomeu Bueno da Silva na confluência dos rios Vermelho e Bugre visava garantir, na prática, o controle português sobre a área, antecipando os termos do futuro Tratado de Madri (1750), que consolidaria a política de “quem ocupa, possui”, explica Luciana.
Ela lembra que documentos históricos confirmam a importância geopolítica do local. Cartas régias, mapas manuscritos e registros eclesiásticos encontrados em arquivos do Museu das Índias de Sevilha (Espanha) e do Museu Ultramarino de Lisboa (Portugal) citam a então chamada Freguesia de Nossa Senhora da Barra, e revelam que ali se encontrava a primeira estrutura administrativa do território goiano sob domínio português.
Apesar disso, Buenolândia foi ignorada durante séculos pelas narrativas oficiais. Só recentemente, graças ao trabalho de pesquisadores, professores e moradores locais, sua história começa a ser resgatada e celebrada. A fundação do aniversário do distrito, por exemplo, é recente: foi criada por lei municipal apenas em 2021, após mobilização da comunidade, e celebrada pela primeira vez em 2022 com missa, alvorada, café coletivo e a inauguração dos nomes das ruas com homenagens a antigos moradores.
“Hoje, quando chega uma conta de luz, vem com o nome do bisavô, da avó, de alguém que deixou um legado ali. Isso traz um orgulho e uma emoção enormes”, relata Luciana.
Outro reconhecimento oficial também chegou em nível estadual. Em 10 de agosto de 2023, foi sancionada pelo governador Ronaldo Caiado a Lei Estadual n.º 22.202, que institui Buenolândia — o Marco Zero de Goiás — como Patrimônio Histórico Cultural do Estado de Goiás.
Terras da Santa
Um dos principais esforços para reconstruir essa história é o projeto cultural e de pesquisa Terras da Santa, idealizado e coordenado por Luciana Helena Alves. A iniciativa combina arte, ciência, oralidade e arquitetura para valorizar o patrimônio cultural rural da região. O projeto ganhou destaque com sua primeira grande mostra pública realizada em março deste ano na sede do Iphan, em Goiânia.
A programação contou com o lançamento do livro Terras da Santa, escrito em coautoria com pesquisadores e estudantes de diversas áreas. A obra retrata os modos de vida, as expressões artísticas e a ancestralidade do Arraial da Barra, reunindo poesia têxtil, fotografias, cartografias afetivas e relatos das famílias que mantêm viva a memória do lugar.
Na mesma ocasião, foi aberta a exposição “Casa Sertaneja Goiana”, que traça um panorama da arquitetura vernacular e da cultura material das casas construídas na região desde o século XVIII até os anos 1930. Um recorte de vivências rurais traduzido em tecidos bordados, mapas hidrográficos táteis e QR Codes que permitem ouvir as vozes de moradores históricos, como Dona Vaninha, Seu Inocêncio e Dona Francisca.
“É um trabalho coletivo e sensível, que envolve os moradores, a universidade, os alunos e os saberes tradicionais. Queremos registrar para que essa história não desapareça com a morte das pessoas”, afirma Luciana.
Além do caráter artístico e acadêmico, “Terras da Santa” tem forte impacto comunitário. Por meio dele, os moradores passaram a celebrar oficialmente o Dia da Buenolândia, em uma festa que também marcou a inauguração dos nomes das ruas — escolhidos pela própria população para homenagear antigos moradores. Hoje, por exemplo, uma simples conta de luz chega com o nome de um antepassado estampado no endereço, ressignificando o cotidiano com identidade e pertencimento.
Ao todo, o projeto já realizou 14 ações de extensão, dois projetos de pesquisa, uma exposição, um livro publicado e mais dois a caminho. Os próximos passos incluem uma nova etapa com foco na juventude das comunidades ribeirinhas ao longo dos 43 km do Rio Vermelho, buscando entender o que os jovens pensam sobre patrimônio, identidade e futuro.
“Queremos ouvir os jovens que vivem nesses territórios, não apenas preservar o que já foi, mas construir com eles uma nova consciência histórica e afetiva sobre o lugar onde vivem”, explica a pesquisadora.
Pioneirismo
A história da “Barra” está ligada ao retorno de Bartolomeu Bueno da Silva Filho ao território de Goiás, guiado pelas picadas que tornaram o caminho mais fácil e transitável.
Em 1683, seu pai, Bartolomeu Bueno da Silva, chegava até o Rio das Mortes, seguindo o roteiro que Manuel Correia traçara em 1647. Nessa viagem, Bueno se deteve longamente no local denominado Barra, na junção dos rios Vermelho e Bugre, onde encontrou uma boa mina. Foi nesse local que Bartolomeu usou a artimanha do prato de aguardente com fogo para impressionar os nativos, ameaçando fazer o mesmo com seus rios. Devido a esse fato, ganhou o apelido de Anhanguera, que quer dizer Diabo Velho. Na volta, levou ouro, além de grande número de nativos como cativos.
Cerca de quarenta anos depois, Bartolomeu Bueno da Silva Filho chefiou uma Bandeira de cem homens, com o fim de localizar o lugar onde estivera com seu pai. Tendo encontrado o aldeamento dos índios Goyazes e vestígios da roça que foi cultivada pelo Anhanguera, seu pai.
Foi neste local que ele fundou, em 6 de julho de 1726, o povoado de Arraial da Barra, hoje o Distrito de Buenolândia. No ano seguinte, Bartolomeu Bueno fundaria os arraiais de Ouro Fino, Ferreiro e Santana, sendo que este último deu origem à cidade de Goiás.