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A Vila Boa, sua gente e suas memórias de 297 anos

Em sua terceira reportagem especial sobre os 297 anos da Cidade de Goiás, o Jornal Nova Fogaréu traz alguns recortes da história, fruto das lembranças de pessoas que colecionaram memórias ao logo dos anos e criaram laços de amor e afetividade com a cidade

 

VÂNIO LIMIRO

 

Uma cidade que viveu três séculos já teve tempo suficiente para juntar, memórias, histórias e lendas. A Cidade de Goiás entra no limiar dos seus trezentos anos trazendo memórias, lendas e narrativas, que preservam sua história, criam imagens e refletem sua importância como o berço do Estado de Goiás

Memórias centenárias parecem se esconder nos becos e quintais imensos, nos adros cheios de ritos das igrejas, nas margens de um Rio Vermelho que escorre calmo, testemunhando o que acontece nessas sombras. Passados quase três séculos, o que se passa em Goiás reflete, ainda, a história que vem dos tempos do Arraial de Sant´Anna e suas minas de ouro, dos tempos de Vila Boa de Goiás e o poder ali instalado. Os ecos do passado ainda ressoam, todos os dias, na Goiás de hoje.

Para além dos documentos, igrejas, casarões e ruas, a Cidade de Goiás tem o privilégio de ainda contar com personalidades que trazem na mente e no coração um rico acervo de memórias que também ajudam a escrever sua história secular, fascinante e rica.

Entre estas personalidades está o escritor, advogado e memorialista Elder Camargo dos Passos. Aos 82 anos, já alquebrado pela idade, Elder é o maior expoente vivo das memórias que enriquecem a história da cidade. Quando criança, Elder viveu na casa em frente à da escritora Cora         Coralina, sendo, portanto, outro ilustre morador da Ponte da Lapa. Suas memórias e seu cuidado e afinco em preservar a história estão registrados em inúmeras catalogações, livros, artigos, arquivos, e em um inestimável acervo imaterial, como sua profunda admiração por Veiga Valle, sobre quem até publicou um livro, sua atuação como cantor seresteiro e de música sacra, resgatador das modinhas e motetos vilaboenses e ao seu papel na configuração da Semana Santa de Goiás tal como a conhecemos nos dias de hoje.

Foi graças à atuação de Elder que a Semana Santa vilaboense tornou-se um evento de alcance midiático nacional, colocando a antiga capital do estado no centro das atenções de inúmeros fotógrafos, cinegrafistas e turistas, que anualmente visitam a cidade para conhecer a Procissão do Fogaréu. Foi Elder quem liderou a criação da Organização Vilaboense de Artes e Tradições, a OVAT, um grupo formado por jovens católicos que, nos anos 1960, se juntaram com o objetivo de promover o passado histórico e cultural de Goiás visando o desenvolvimento turístico do local.

Há muitas histórias gravadas na memória da cidade, algumas até de cunho sobrenatural. Uma dessas conta que um capitão-mor, responsável pelas tropas locais, desapareceu em 1789 e, cem anos depois, seu corpo teria sido encontrado emparedado em uma das casas da antiga Rua 13 de Maio, uma das mais belas da cidade.

As ruas de Goiás ajudam a escrever a história. É na 13 de Maio que mora Maria Antonieta Ramos Jubé Carneiro, a Dona Nini. Do alto de seus 87 anos, ela é uma destas memórias vivas da cidade, a começar pela típica casa onde mora, com frente estreita e muito comprida.

É Dona Nini quem relembra uma das narrativas populares em Goiás: dizem que há um veio de ouro descendo dentro de um dos morros que cercam a cidade e chegando até o Rio Vermelho, nos fundos da Casa de Cora. “Dizem que está aí até hoje”, provoca Nini, que se lembra de um personagem, este real, que conheceu quando criança. “Lembro de um homem que morava no oco do tronco de um tamboril, que ficava na frente do cemitério”.

Pessoas que andavam pelas ruas da cidade no passado geraram lendas no presente. É o caso de Maria Grampinho, a lavadeira que perambulava por Goiás e encontrava abrigo no porão da casa de Cora Coralina. Quem visita o Museu Casa de Cora encontra informações sobre Grampinho, que está presente nos versos da poetisa e em estudos sobre o patrimônio imaterial da cidade. Ela andava com uma trouxa nas costas e muitos grampos no cabelo, o que lhe deu o apelido. Grampinho, que esteve sempre na imaginação das crianças, num misto de medo e encantamento, morreu logo após o falecimento de Cora. Dizem que ainda anda por ali quando a cidade dorme.

A propósito, estas aparições frequentariam outros espaços na cidade, como o Museu das Bandeiras, a antiga Cadeia Municipal, que por décadas foi lugar de dor, torturas e morte. Dizem até que antigos governadores de vez em quando voltam ao Palácio Conde dos Arcos. O Quartel do 20, com seu poço fundo, também tem sua fama, assim como a Igreja da Boa Morte, onde dizem ser possível ouvir passos e ruídos inexplicáveis durante a madrugada. Há algo também na Catedral de Sant´Anna, a igreja que não pode ser concluída. Podem até ser lendas de uma cidade antiga, mas nunca aparece alguém disposto a tirar a prova.

Lenda ou história, essas memórias habitam as famílias vilaboense desde sempre, basta conhecer a professora de literatura Goiandira Ortiz, uma das proprietárias da Livraria Leodegária, no Mercado Municipal, e que vende obras de autores da cidade.

“O núcleo familiar é muito forte em Goiás, a memória que ele traz. Isso acontece com a receita de doces, com o bordado, com o imaterial, como as histórias orais. A cidade foi muito efervescente culturalmente da segunda metade do século 19 até a transferência da capital. Havia três salas de cinema, vários jornais, alguns deles comandados por mulheres, teve a fundação do Gabinete Literário, em 1864. Havia, então, um limiar entre o rural, de uma sociedade patriarcal, e uma urbanidade. Além disso, há uma geografia que ajuda a preservar tradições. As ruas não mudam, as fachadas não mudam. É uma singularidade que Goiás tem a oferecer nas histórias contadas aqui”, ressalta Goiandira.

Entre estas memórias imorredouras que habitam a mente dos vilaboenses estão as cenas de antigamente que caracterizavam a cidade. Os moradores antigos guardam na lembrança imagens que não os abandonam. Eles revivem as cenas que alimentaram narrativas orais, criaram personagens e preservaram superstições.

São memórias como as águas das cisternas. Muitas residências têm profundas perfurações nos quintais para chegar ao lençol freático e conseguir água pura. Água para beber, só a da cisterna.

Eles lembram também dos vendedores de lenha. Como as cozinhas eram movidas a fogões e fornos a lenha, dezenas de pessoas traziam, em lombos de mula, a madeira necessária para alimentar o fogo. Eles gritavam pelas ruas oferecendo lenha e as donas de casa reconheciam, de longe, os gritos.

Os antigos moradores trazem na memória o dia a dia das lavadeiras. As grandes pedras do Rio Vermelho eram perfeitas para as lavadeiras fazerem seu trabalho. Ainda hoje, muitas pedras pisadas podem ser vistas próximas ao Mercado, onde elas trabalhavam todos os dias.

Outra lembrança eram os doces na janela. Ainda hoje é possível andar pela cidade e ver doces expostos na frente de algumas casas; é um hábito que vem de longe. Cora Coralina colocava as delícias que fazia nas janelas para o deleite dos meninos travessos que roubavam os doces. Há quem diga que Cora sabia sobre os meninos; deixava os doces ali por isso mesmo.

Há também a memória musical, retratada nos cânticos dos negros nas folias de reis, nas congadas, serestas e festas do Divino. A forte e famosa musicalidade que Goiás ostenta há mais séculos ganhou expressão por meio de saraus, hinos, serestas, formação de musicistas.

“Goiás é uma cidade musical”, diz o maestro e compositor Fernando Cupertino. Filho da antiga Vila Boa, ele conviveu, desde a infância, com essa característica local. Mesmo tendo uma destacada carreira na medicina – é professor da UFG e já foi secretário estadual de saúde –, Cupertino nunca abandonou essa paixão. “Havia uma tradição de recebermos formação musical na escola. Então sempre tivemos isso em nosso cotidiano. Nas valsas, nas odes, nas marchas. A vida social, sobretudo no século 19, até a mudança da capital, girava em torno dos saraus que eram feitos na cidade. Esses saraus, aliás, reuniam não só os convidados do evento, mas pessoas que ficavam na porta das casas, na rua, para ouvir as apresentações”, conta Cupertino.

Enfim, há uma ligação íntima entre vida e arte em Goiás. É algo que fica no inconsciente coletivo, no imaginário, na superstição. São coisas que ficam e não são substituídas facilmente. Goiás cuida e guarda desse patrimônio, mesmo que para isso tenha que andar um pouco mais devagar; afinal, não há pressa.

Élder Camargo dos Passos, expoente vilaboense – Foto: Fernando Cupertino

Maria Antonieta Jubé, a Dona Nina, é uma das memórias vivas da Cidade de Goiás – Foto: Acervo Diomício Gomes

Cenário vilaboense aos 297 anos – Fotos: Marcos Aleotti

Cenário vilaboense aos 297 anos – Fotos: Marcos Aleotti

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