Quando chega a temporada, a cidade de Goiás muda de cheiro e de humor. O ar fica tomado por um aroma inconfundível, que sai das panelas, invade as feiras e se espalha pelas esquinas. O pequi chegou. E com ele, vem a divisão mais antiga e saborosa do estado: há quem ame perdidamente e há quem não suporte nem o cheiro. Meio-termo? Nenhum. O pequi é paixão ou repulsa e é justamente essa intensidade que o torna símbolo da identidade goiana.
Mas o “ouro do Cerrado” é muito mais do que um fruto exótico com sabor marcante. Ele é alimento, memória e cultura. É saúde disfarçada de tradição. É história viva servida à mesa. Para entender esse universo que mistura ciência e afeto, conversamos com quem entende do assunto: a nutricionista Laila Correia, que desvenda os mitos sobre o valor nutricional do fruto, e o chef Aloísio Godinho, que transforma o pequi em poesia culinária.
Laila começa com um alerta bem-humorado: “Coitado do pequi. Muita gente fala mal dele achando que é só gordura, mas ele é um tesouro nutricional.” E ela tem razão. Um caroço de cerca de 15 gramas tem apenas 30 calorias e concentra gorduras boas, os famosos ômegas 3, 6 e 9, proteínas, fibras e uma generosa dose de vitaminas A e E, poderosos antioxidantes que fortalecem o corpo, a pele e a visão.
Além disso, o pequi é rico em fósforo e outros minerais, tem ação anti-inflamatória e é um grande aliado do intestino preguiçoso. “Tem gente que diz: ‘meu intestino nunca funcionou tão bem quanto na época do pequi’”, brinca Laila.
O problema, segundo ela, está no exagero. “Três a quatro caroços é o ideal. Oito já é o limite. Mas o goiano apaixonado chega fácil aos quarenta!”, comenta entre risos. O segredo, diz Laila, é equilíbrio: comer com salada, preferir o pequi fresco da safra e aproveitar o sabor sem culpa, nem excessos. Dá até pra congelar e saborear o ano todo.
Da roça à alta gastronomia: o pequi reinventado
Se Laila nos ensina a comer com sabedoria, o chef Aloísio Godinho mostra que o pequi é pura versatilidade. “O pequi é afeto. É cheiro de mãe, de avó, de cozinha de chão batido. É memória do Cerrado.” Ele reinventa o fruto com criações que surpreendem até quem achava que pequi só combinava com arroz.
Entre os pratos, destaca o peixe com molho de pequi, herança de infância, que é mandi cozido no vapor e regado a um molho de polpa de pequi e azeite. Outra sugestão é o creme de pequi com carnes brancas, ideal para acompanhar frango ou filé suíno. “Um filé de porco com chantilly de pequi, alho e ervas fica sensacional”, garante o chef.
E as diferenças regionais também contam: o pequi goiano, menor e mais carnudo, é o preferido dos chefs. O segredo está em lavar bem e retirar a entrecasca, que amarga se ficar no preparo.
E quem disse que pequi é só salgado? Aloísio apresenta suas criações mais ousadas: o brigadeiro de piqui, feito com leite condensado e polpa do fruto. Tem até o “Pequi do Amor”, variação do doce que já faz sucesso Brasil a fora com o morango. E claro, não podia faltar as variações refrescantes como os sorvetes e picolés de pequi, que unem nutrição, leveza e sabor.
Comida é afeto
Entre receitas e lembranças, tanto Laila quanto Aloísio concordam: o pequi é mais que comida, é sentimento.
“Comida é amor”, diz Aloísio. E cada caroço descascado, cada panela compartilhada em família, é um ato de afeto e continuidade. Como nas pamonhadas, o preparo do pequi une gerações e preserva tradições que vêm de longe, dos povos que primeiro habitaram o Cerrado.
Mais que um alimento, ele é símbolo de identidade, resistência e memória coletiva. Ele conta histórias, guarda lembranças e celebra a relação profunda do goiano com sua terra. Talvez, quando Cora Coralina escreveu que “levaram o ouro e deixaram as pedras”, não imaginasse que um outro ouro, o do Cerrado, permaneceria aqui, firme, amarelo e perfumado, alimentando o corpo e a alma dos goianos.



