O temor de uma nova onda de destruição de um dos maiores sítios históricos do estado de Goiás revelou, mais uma vez, a necessidade de efetivas ações por parte das autoridades, para evitar que a Cidade de Goiás sofra a cada vez que as águas do rio transbordam
VÂNIO LIMIRO
No último dia 20 de fevereiro, a Cidade de Goiás enfrentou novamente o problema das enchentes do Rio Vermelho. Em menos de 24 horas, a quantidade de chuva foi equivalente à esperada para 15 dias.
Diante dos riscos de destruição, foi evacuado o prédio da prefeitura e isoladas ruas e avenidas. Todo o acervo do museu Casa de Cora Coralina e do Instituto Biapó foram transferidos; pacientes internados no Hospital São Pedro, o mais antigo do estado, foram retirados por ambulâncias durante a noite e transferidos para cidades vizinhas, atendendo as orientações da Defesa Civil e Corpo de Bombeiros.
O prefeito Aderson Gouvea determinou a criação de um gabinete de crise, instalado no Teatro São Joaquim, envolvendo o Corpo de Bombeiros, Defesa Civil, Secretaria de Saúde e outros órgãos, monitorando a situação, não só no perímetro urbano, mas em outros locais banhados pelo rio.
O temor de uma nova onda de destruição de um dos maiores sítios históricos do estado de Goiás revelou, mais uma vez, a necessidade de efetivas ações por parte das autoridades para evitar que a cidade sofra tanto a cada vez que as águas do Rio Vermelho transbordam.
Ao logo dos anos, as enchentes enfrentadas na cidade expuseram fragilidades e a omissão do poder público. Governantes não tomaram medidas preventivas contra a destruição de imóveis centenários e da infraestrutura local.
Ademais, o desmatamento desenfreado na área rural potencializa os riscos. A cada vez que as águas do rio sobem deixam pessoas desalojadas, casas centenárias destruídas ou danificadas e pontes interditadas por risco de desabamento.
Enchentes de 1782 e 1839
O primeiro registro de devastação na Cidade de Goiás data de 1782, quando o Rio Vermelho transbordou levando as três pontes que existiam e deixando as duas partes da vila isoladas.
Nessa época o homem já castigava o rio e, segundo o historiador Paulo Bertran, a enchente teria ocorrido por causa do aumento fora do comum da pluviosidade, e causas humanas, decorrentes do assoreamento do rio por causa da extração do ouro.
Em 1839, o Rio Vermelho e o córrego Manuel Gomes avançaram sobre suas margens, destruindo as pontes que faziam a ligação entre os dois lados da cidade, devastando estabelecimentos comerciais e industriais, residências, chácaras e o Hospital de Caridade, derrubando seus muros e algumas de suas paredes. Contudo, o que repercutiu mais tragicamente para os moradores foi a destruição da Igreja da Lapa; sua torre e as paredes de pedra e cal ruíram completamente. Houve apenas uma vítima fatal – um soldado que estava ajudado no resgate e tentou enfrentar o rio a nado –, mas os prejuízos materiais da enchente foram altos, cerca de 32 contos de réis para recuperar as pontes, o hospital, o chafariz e o calçamento das ruas.
Danos em 2002
O temporal ocorrido na virada de 2001 para 2002 deixou um saldo pior. O grande volume de água atingiu todas as construções ribeirinhas, entre elas a casa de Cora Coralina. O muro da residência foi derrubado e a edificação foi invadida pela correnteza, que levou com ela objetos e anotações pessoais insubstituíveis da poetisa.
A Cruz do Anhanguera, um dos símbolos da cidade, foi levada pela enxurrada. O Teatro São Joaquim, recentemente restaurado, foi severamente atingido. Quarenta casarões tombados pelo órgão ligado à ONU sofreram sérios danos. Vinte e três lojas à beira do rio viraram ruínas. A enxurrada danificou ainda calçamentos de pedras, postes de ferro e outros itens do conjunto histórico.
A cidade havia recebido o título de Patrimônio da Humanidade em dezembro, menos de um mês antes da inundação. A reconstrução das residências foi motivo de grande briga entre a prefeitura e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pois muitas das adaptações feitas nas casas nos últimos anos não foram mantidas no projeto de restauração.
Após quase dois anos, obras emergenciais e de restauração, realizadas com dinheiro público e privado, recuperaram o charme da cidade. Porém, ações para evitar as cenas de devastação daquele réveillon nunca saíram do papel. Após 2002, técnicos de órgãos de defesa do patrimônio histórico e do meio ambiente fizeram relatórios e pareceres. Quase todos acabaram engavetados.
Um deles, elaborado pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Históricos (ICOMOS), apontou o assoreamento e a diminuição gradativa da vazão do Rio Vermelho como responsáveis pelo transbordamento e da destruição em suas margens.
Entre outras medidas, cobrou-se a retirada de um aterro na Avenida Beira Rio, nos fundos do Mercado Municipal, e a desapropriação dos cerca de 20 imóveis construídos no local, que foram destruídos na enchente de 2002. O aterro continua lá.
O conselho da Unesco e Defesa Civil pediram também a suspensão de edificações na caixa de vazão do rio e a reconstrução das duas últimas pontes de concreto próximo ao Mercado, apontando como inadequadas suas estruturas que dificultam o escoamento da água. Em outro parecer, realizado pela Defesa Civil, cobravam-se melhorias na rede de águas pluviais, obras de drenagem.
Para a historiadora e ex-superintendente do IPHAN, a vilaboense Salma Saddi, o rio responde ao tratamento que vem recebendo à medida que diminuem suas margens, criam represas que às vezes se rompem, constroem aterros e avenidas e liberam construções de imóveis em lugares inadequados, prejudicando imensamente a vazão de água. Saddi ressalta que não há ações efetivas por parte das autoridades para combater o problema.
“Para além das orientações e estudos sobre o ideal a ser feito, é preciso vivenciarmos as devidas ações. Por exemplo, é necessário que as pontes de concreto, que são baixas, sejam alteradas com o intuito de abrir vazão para o rio. Informações sobre como tem sido feito o monitoramento do desmatamento nas margens do Rio Vermelho também precisam ser repassadas cotidianamente. Muitos pareceres foram dados e, na minha opinião, o que precisamos é decidir qual o tratamento podemos dar para diminuir o impacto dessa água quando ela chega na cidade”, pontua Salma.
É evidente que falta por parte das autoridades um esforço coordenado e sério para implantar as mudanças necessárias. Um exemplo são locais que precisam ser desapropriados para possibilitar as alterações. Salma Saddi recorda que, após a enchente de 2001, a única área que não foi tratada foi a do fundo do Mercado Municipal, onde mais de 20 imóveis que caíram continuam lá, ocupando o espaço que se devia alargar para o rio, mas, 22 anos depois, a prefeitura ainda não desapropriou a área.
“Quem tem o poder de desapropriação é o município. O governo chegou a oferecer o recurso para desapropriação; a Defesa Civil fez um documento claríssimo dizendo que não são mais áreas edificáveis, não vai se construir nada lá. Então, por que esses proprietários não negociam com a prefeitura? Por que a prefeitura não resolve essa questão? Entra prefeito, sai prefeito e não se resolve a questão’’, ressalta Sadi.
Procurada pela reportagem, em nota, a prefeitura de Goiás afirmou que já está em andamento uma negociação com os proprietários dos imóveis do aterro. Antes de uma possível desapropriação, o executivo municipal afirma que está propondo uma permuta, onde a prefeitura oferecerá áreas em outros locais da cidade para troca dos imóveis por outros de propriedade dos municípios.
Sem as soluções devidas, os vilaboenses aguardam apreensivos o início das chuvas, temendo que a as águas destruam mais um pedaço de um dos mais valiosos patrimônios históricos de Goiás e do Brasil. Aliás, não só daqui; patrimônio da humanidade.
foto capa: Enchente do Rio Vemelho em fevereiro de 2024 – Foto:Alex Pereira
Aterro nos fundos do Mercado Municipal, na avenida Baira Rio. aguarda desapropriação
dos cerca de 20 imóveis para revitalização do local – Foto: Alex Pereira.
Muro de contenção construído nas margens do Rio Vermelho em 1913 – Foto: Acervo Antonio Campos
Ao longo de décadas, o Rio Vermelho foi tendo seu livre curso e espaço de vazão alterado, causando transtorno para a cidade na época das chuvas – Fotos: Reprodução – Portal Notícias de Goiá
Interação social dos vilaboenses com o Rio Vermelho. Destaque para o
relevo do terreno na margem do rio – Foto: Acervo Antonio Campos.